Quando, em agosto de 1966, se inauguraram os primeiros 8 quilómetros da autoestrada de acesso à Ponte sobre o Tejo, hoje chamada 25 de Abril, dificilmente se antecipariam as peripécias pelas quais passaria a construção do restante traçado da Autoestrada do Sul, com os seus últimos 62 km a serem inaugurados em 25 de julho de 2002, ligando finalmente Lisboa ao Algarve.
Portugal não é diferente da generalidade dos países democráticos quanto a decisões governamentais sobre grandes obras públicas, ou seja, há sempre uma natural acesa discussão na sociedade, diferentes perspetivas e soluções alternativas em debate, contestação protagonizada por grupos de interesse – mesmo que legítimo – que lutam por ver as suas pretensões atendidas, uma ou várias ações judiciais e, no fim, a escolha da opção que, esperamos todos, seja aquela que melhor responde às necessidades identificadas e defende o interesse público.
Esta luta foi sendo protagonizada ao longo dos anos, em vários momentos e envolvendo projetos diferentes, mesmo até em período de ditadura, quando, em 1948, o poeta sadino Sebastião da Gama escreve a pedir socorro para a Mata do Solitário, apelo ouvido pelo professor Carlos Baeta Neves que, na sequência deste, acaba por fundar a Liga para Protecção da Natureza e estar na origem da ordem para que o Estado adquirisse a Mata do Solitário e a transformasse na Reserva Integral que é hoje.
Várias outras situações similares foram sendo acompanhadas com interesse pela opinião pública e protagonizadas pela administração, sejam elas estradas, aterros sanitários, incineradoras de resíduos perigosos, pontes, aeroportos, linhas de transporte de energia e obviamente, autoestradas.
A Autoestrada do Sul conheceu diversas fases desde 1966, sendo uma delas particularmente interessante pelo seu desfecho.
Estávamos no ano de 1993 e havia sido recentemente inaugurado o primeiro troço da Via do Infante, entre Faro e a Ponte do Guadiana, quando é lançado o Estudo Prévio para a ligação da Autoestrada do Sul a esta Via.
A análise da proposta subscrita pela Junta Autónoma de Estradas (JAE) cedo mostrou, na parte final do seu traçado, a intenção de chegar à Via do Infante por um corredor a construir que cortaria ao meio a Serra do Caldeirão.
Isto, não obstante o Estudo de Impacte Ambiental tivesse contemplado a análise comparativa com o corredor poente, coincidente com o IP1, e concluísse por este como o corredor com menor impacte ambiental.
Sucederam-se inúmeros contactos entre as ONG [Organizações Não Governamentais] de Ambiente com a JAE, com os responsáveis governamentais e com diversos autarcas algarvios, merecendo destaque o trabalho feito à data na Almargem pelo professor João Santos.
Em resumo, e de forma inexplicável, a opção defendida pela JAE era precisamente a coincidente com o corredor da Serra do Caldeirão. Defesa acompanhada por um grupo de atores locais liderados pelo então presidente da Câmara de Loulé, Joaquim Vairinhos.
Com o apoio de diversas ONG de ambiente, mas também de vários especialistas e professores universitários como o professor João Paulo Almeida Fernandes ou o botânico José Rosa Pinto, foi possível evidenciar que a opção defendida pela JAE era mais cara, mais longa, mais demorada, tecnicamente mais complexa e com maiores exigências no traçado e, sobretudo, com muito maior impacte ambiental.
Durante anos, quer de forma mais direta e pública, quer de forma mais reservada, foram sendo mantidos contactos a diversos níveis para que a decisão recaísse sobre a opção que parecia a todos – exceto aos responsáveis da JAE – a mais correta sob todos os pontos de vista, o que se mostrava muito dificil de conseguir, uma vez que a decisão parecia já estar tomada.
Chegamos ao final de 1997 com uma forte contestação protagonizada por diversos atores, não apenas no seio das ONG de Ambiente, mas também na academia e em diversos setores da sociedade.
Em boa hora, o então ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território (MEPAT) eng.º João Cravinho, decide pela criação da Auditoria Ambiental do MEPAT, na sua dependência direta, designando para o lugar a bióloga Isabel Guerra, profissional com um currículo que reunia alargado consenso na sociedade.
Neste processo, a dr.ª Isabel Guerra viria a ter um papel de relevo, uma vez que, pouco tempo após a sua tomada de posse, em meados de 1998, acompanhando o senhor ministro João Cravinho numa deslocação ao Algarve, acedeu à interpelação que lhe foi dirigida para ouvir os argumentos a favor do corredor poente da Autoestrada do Sul. Ficou o compromisso de fazer chegar a mensagem ao senhor ministro, o que cumpriu pouco tempo depois.
Em setembro de 1998, a convite do senhor ministro, uma delegação das ONG de ambiente que protagonizavam a contestação à opção defendida pela JAE para a Autoestrada do Sul, liderada pelo professor João Santos da Almargem e que tive a oportunidade de integrar, reúne-se com o senhor ministro e com a Administração da JAE.
Nesta reunião, após uma breve, mas muito assertiva apresentação feita pelo prof. João Santos, na qual foram apresentados os trabalhos que haviam sido desenvolvidos até então quanto à avaliação das diferentes opções em causa, foi possível deixar claro que não se encontravam razões para que a opção defendida pela JAE fosse pelo corredor nascente, atravessando a Serra do Caldeirão.
Conferindo a possibilidade de a JAE se pronunciar e, após a argumentação aduzida pelos seus representantes, João Cravinho remata a reunião dizendo algo como: “Muito bem! Não havendo como negar que a opção pelo corredor do IP1 é mais barata, mais rápida de construir e com menor impacte ambiental, parece-me que só o argumento de ser excêntrica em relação ao Sotavento algarvio não chega para compensar. A decisão está tomada! Falaremos em breve!”
São públicos e conhecidos os acontecimentos relacionados com a JAE, contemporâneos deste processo. Após uma auditoria ordenada pelo eng.º João Cravinho, investigações judiciais e conclusões de existência de redes de corrupção com identificação de desvio de avultadas quantias de dinheiro, é decidida a extinção deste organismo e a sua separação em três organismos distintos.
Coincidência ou não, e pouco tempo após a referida reunião, o senhor ministro João Cravinho propõe ao então primeiro-ministro António Guterres a alteração da opção de construção da Autoestrada do Sul no troço entre Castro Verde e a Via do Infante, optando pelo corredor do IP1 e reconhecendo como válidos os argumentos das ONG de ambiente, da academia e das populações.
E no final de outubro de 1998, o então primeiro-ministro anuncia a alteração da opção do traçado da Autoestrada do Sul.
Não voltámos a reunir-nos formalmente com o eng.º João Cravinho enquanto desempenhou funções de MEPAT, mas não tenho qualquer dúvida que foi o seu interesse genuíno, a capacidade de ouvir despretensiosamente e a procura de uma decisão em prol do interesse público, que o levou a mudar a decisão anterior, decidindo claramente em favor do ambiente e da biodiversidade.
Há um par de anos, num encontro ocasional, tive oportunidade de conversar com o eng.º João Cravinho sobre este episódio, que ele guardava bem vivo na sua memória.
Recordou esta, assim como um conjunto de outras notas, que me deu então, como memórias da sua passagem pelo MEPAT. Foi uma conversa que guardo para mim, mas, por ocasião da sua morte, e quando se fazem apenas considerações genéricas e de circunstância, deixo aqui este relato na primeira pessoa, e não podia deixar de lhe prestar este público reconhecimento!
O Algarve, o país e a biodiversidade devem-lhe esta boa decisão! E eu fiz questão de lhe agradecer!
Obrigado por fazer parte desta missão!